Em minha ingenuidade, comecei a acreditar que era filha de uma miragem, e, que se me desdobrasse, poderia ver a criatura alada balançar na sombra, enquanto esperava pela volta de sua filha pródiga. A filha da Mãe Natureza – a padroeira dos que vegetam pacientemente, mas que ainda tem esperanças de resgatar o paradigma perdido da existência humana e compreender o que exatamente atrasa a evolução da raça.
Após anos de isolamento, eu já havia adquirido fluência em conversas com animais não-perfumados e vegetais comunicantes, que, entre outras coisas, ensinaram-me um idioma de criptogramas envolvendo cheiros, gostos, toques, imagens, ecos, e, àquela altura do torneio de quem silenciaria por mais tempo, eu já falava uma linguagem de sensações próprias dos habitantes do eremitério.
Acho que o tempo tem um plano secreto, fala um idioma de segredos, e, talvez, por esta razão, não nos seja permitido entrevê-lo. Ou talvez estejamos unidos por um fio invisível que nos faz entrelaçar destinos, em alguns casos, como o meu, de modo obsessivo. Tentando vencer a mudez, cheguei a desenhar palavras para colocar nos lábios do silêncio, com a frágil ilusão de que em algum momento, ele se arrependesse de tanta frieza e voltasse para retribuir meu gesto. É quando respeito a sabedoria do silêncio e digo: eu acho que entendo. E me lembro que nobreza de sentimento é não sucumbir antes do tempo. A recordação é uma estação atemporal. Não desgasta o que foi verdadeiro, porque no tempo de dentro, somos todos eternos. Já aquele outro relógio, não passa de um animal selvagem salivando a nossa carne. Não há como nos defendermos. Enquanto isso, envelhecemos.
Ainda há pouco, no firmamento, um raio esfaqueou o céu. Como se tivesse sido assaltado por uma fraqueza súbita, seu rosto empalideceu. Das alturas, tomba o azul, já sem forças. Sempre tive receio que essa chuva não fosse deixá-lo ser meu, e que se você não fosse dela, também não seria de mais ninguém.
Há tardes, como estas, de quase Dezembro, em que os pingos da chuva a mim se misturam. E caem com tanta força que fazem mossas na madeira cinzelada da memória. E Chovo. Chovo lagos, rios, e se for preciso, até oceanos, para que juntos, possamos navegar neste sonho. Mas recobro a serenidade e reconheço teus olhos na contra-luz do relâmpago. E descubro com nitidez, que em mim, é você quem chove. E te aceno em rebentos, pelo milagre desta flor que só medrou, graças à sede que sua tempestuosidade serviu a este amor de raízes. Porque te lembro em segredo. Vi quando guardou as pétalas que escaparam do meu vestido, achando que eu não estava vendo. Guardou num pote, que para relembrar o perfume, de vez em quando, abre a tampa. É quando surgem do nada, todas as borboletas. E pousam mágicas, no jardim da nossa história.
A brisa do passado sempre volta para nos acariciar o rosto, como se quisesse nos descobrir novamente em um sopro. Quem sabe, seja para recordar as crianças de espírito que ainda nos habitam. E arriscaria dizer que, deve ser este o motivo para que dentro de nós haja tantos ruídos. Talvez elas queiram apenas ter com quem brincar, devem se sentir mesmo muito sozinhas.
E a menina, invisível, balança sua saia-de-chita e gira até ficar tonta sob o sereno de prata. Pisa no ar, leva um susto e pára. Era só teu rosto, me vendo: toda iluminada.
Assistindo a chuva de mil tons que cai atrás das vidraças.
É tanto céu, que derrama.
Lídia Martins.
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